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2/18/2016

RAY CUNHA




Suave é a noite

Ray Cunha retratado por Olivar Cunha em grafite
sobre tela para a capa do livro de poemas
SOB O CÉU NAS NUVENS - Belém, 1981








E

stou só, na tarde. A tarde é prenhe de mistérios, que desvendo com um olhar para meu jardim. Ele ostenta uma rosa amarela, de Gabriel García Márquez. Visto uma camisa branca de algodão, calças e casaco azuis de linho, e sapatos pretos de couro.
Meu rosto está bem barbeado e recendo a Chanel 5, amadeirado, e assim misturo-me aos murmúrios e cheiros da tarde. Fragrâncias de mar, vindas do meu coração, amalgamam-se ao ar prenhe do perfume das virgens ruivas. A tarde é azul, tão azul que escorre na tela que Olivar Cunha está pintando. Ouço os sussurros da tarde como o roçar dos lábios de uma mulher de olhos verdes.
Estou só, na tarde, pois minha amada viajou. Assim, navego no rio da tarde, sozinho, ao encontro da minha amante. Meus passos me levam a um café no Setor Hoteleiro Sul. Há tantas mulheres lindas no café! Duas conversam sentadas em um sofá. Uma é loira e seus olhos são azuis como a tarde; a outra é ruiva, e seus olhos se confundem com esmeraldas. Riem. Seus risos são cristalinos como crianças recém-lavadas, ao sol matinal da primavera. Conversam tão perto uma da outra que seus lábios, grandes e vermelhos, parecem uma dança. Degusto Mateus Rosé. Preparo-me para quando minha amante chegar.
A tarde agoniza. Morre como uma rosa, que, depois de se tornar a joia mais delicada, preciosa e bela do mundo, deixa um eterno rastro de luz. Assim desliza o rio da tarde. Logo a cidade será um transatlântico todo iluminado, e as criaturas mais esplendorosas do universo, que são as mulheres, espargirão seu perfume, como jasmineiros em tórridas noites em Belém do Pará.
Uma jovem mulher passa ao meu lado, quase roçando em mim. Volto-me para vê-la. É uma negra em vestido de seda, tal qual uma que vi na Estação das Docas, em Belém. Talvez fosse da Guiana Francesa, ou de Trinidad e Tobago, ou da Martinica. Falar em Martinica, se Hemingway estivesse aqui comigo eu o convidaria para pescar ao largo de Sucuriju, no Amapá. Bem que Fernando Canto poderia estar comigo nesta tarde, que morre. Mas o poeta tem suas próprias tardes, que são, certamente, prenhes do perfume das virgens ruivas, e mar. O poeta decifrou a dimensão da intensidade e tem olho clínico para o cheiro de maresia.
Não tenho nem um, nem outro, nem a mulher amada. Só me resta esperar mais um pouco para cair no colo da minha amante. Ela chega suavemente, e, quando a percebo, sua paradoxal luz ofuscante entra nos meus sentidos e me conduz à dimensão do primeiro beijo. Mas nunca estamos preparados. Minha amante é puro mistério, e é também amante de todos os homens, e, principalmente, de todas as mulheres. Ela é a mais bela das rosas: é a noite.

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