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5/03/2012

RAY CUNHA



 CONTO/Luziânia


Conto novo: escrevi-o em março passado. Era para participar de um concurso, mas achei que não tem peso para chegar ao cinturão e trabalhei outra história curta, a qual acredito reunir mais chances de sucesso. Assim, torno público este novo conto, o qual se chama Luziânia, a maior das pequenas cidades do Entorno do Distrito Federal, uma das regiões mais violentas do planeta. 

De dia, as margens da BR-040, entre Brasília e Luziânia (GO), era uma sucessão de cerrado pegando fogo e povoados imersos na fumaça e na poeira, num sono antigo, que, à noite, mergulhava no horror imposto pelos barões locais da droga. A sensação térmica era de 40 graus centígrados e a umidade relativa do ar, de 4%. Quase não se conseguia respirar. A temperatura era de 21 graus dentro do carro, uma caminhonete negra, Chevrolet, que cortava o distrito de Jardim Ingá rumo a Luziânia, sede do município, uma dessas cidadezinhas perdidas à sombra da miragem de Brasília. Iam dois homens no carro.

O caso é o seguinte: ele já deve ter uma fortuna de R$ 1 bilhão. Quer se eleger... e será eleito – disse o que ia ao volante. Era pequeno e pardo, tinha o nariz quebrado e seus olhos brilhavam como os de Rafael Leónidas Trujillo Molina, o Bode.

O outro sujeito lembrava o Jeca Tatu de Mazzaropi, e estava sempre com as mãos suadas; parecia que estava morrendo, o tempo todo. Sentia raiva, e medo. Entraram pelo Parque Alvorada, subúrbio de Luziânia. A caminhonete estava encardida como os pombos que disputam restos na Pastelaria Viçosa, na Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília.

- Temos que ter cuidado com essa gente. São mafiosos – disse Jeca Tatu. Sua voz era todinha a do papagaio do programa da Ana Maria Braga, da TV Globo.

- Ele quer se eleger e podemos fazer a campanha dele pelo jornal e pela rádio - disse o do volante, seco e rijo como um peso pena. - Estavam passando pela Igreja do Rosário, em direção ao centro da cidade.

Quando chegaram ao restaurante, o tipo com voz de papagaio estava com a testa porejada, apesar da secura do tempo. A tarde já ia pelo meio e só havia meia dúzia de pessoas na casa, contando com eles. O pugilista foi falar com o dono do estabelecimento, de quem era conhecido, retornando pouco depois para a mesa. O garçom já havia servido água tônica com gelo e limão.

- Ele não vai demorar – disse o pugilista. – E a Mara? – perguntou ao homem com voz de papagaio.

- Mara? – respondeu o outro, estupidamente. – Estou puto com ela! – disse, enfezado.

O pugilista sabia alguma coisa.

- É inútil brigar com as mulheres – disse. – Nem Freud conseguiu entendê-las. Aliás, elas mesmas não se entendem. Para mantê-las nossas aliadas tudo o que temos a fazer é tratá-las como crianças, o tempo todo, excitá-las, comprar-lhes presentes caros, essas coisas.

- Acho que a melhor maneira de lidarmos com elas é fazendo-as sentir o peso da nossa mão – disse Jeca Tatu.

- Não penso assim. Obtive o esclarecimento definitivo sobre as mulheres vendo um documentário da BBC sobre répteis – disse o pugilista.

- Répteis? – perguntou Jeca, sem acreditar naquela conversa. Ambos eram velhos amigos da faculdade de direito, e Bode sempre fora acometido por aquelas conversas exóticas.

- Sim, répteis. Alguns lagartos, não me lembro mais se do norte da África, ou de alguma ilha do Mediterrâneo, procuram pedras para se aquecerem. Aqueles que conseguem as maiores têm que enfrentar rivais para não perder a pedra. Os vitoriosos ficam lá, ao sol, e de repente atraem um harém, fêmeas que vão se oferecer para ele. Com as mulheres é a mesma coisa, se você tiver a maior pedra ao sol elas se oferecem a você. No nosso caso, mamíferos racionais, a pedra pode ser um diamante. – O pugilista disse isso e ficou olhando para o sujeito com aspecto de capiau, embora trajasse roupas caras.

- Continuo achando que aquela vaca pensa que sou um touro – disse o tipo com jeito de caipira. – Para certas putas só chumbo quente mesmo.

- Você lhe dá flores, leva-a para dançar, faz carinho nela, quero dizer, antes de meter essa trolha nela? – o pugilista perguntou. Parecia conhecer muito bem seu parceiro para manter uma conversa dessas.

- Mulher gosta é de levar a seco – disse o outro, pedindo mais água tônica.

- Assim ela não sente prazer algum. A menos que você goste de estuprar. Isso é bom. Se você consegue se excitar num estupro, terá nervos para se manter sereno enquanto eu converso com o nosso mafioso. Ele quer se eleger deputado federal para poder lavar a grana que recolhe com o jogo de azar, lenocínio e droga – disse o pugilista. – De modo que o caso da Mara não deve turvar seu raciocínio, amigo.

O outro olhou para o pugilista.

- A Mara tem um amante. Um traficante. O sujeito me mandou um bilhete ameaçando matar a Samanta se eu não liberar a Mara – disse o capiau, com a voz mais parecida do que nunca com a do papagaio da Ana Maria Braga.

- Matar a Samanta? – quase gritou o outro. – Samanta era a esposa do capiau.

O pugilista sentiu que o papagaio estava se cagando de medo; ia dizer alguma coisa quando o candidato chegou. Era comerciante e fazendeiro e falava como o Cebolinha, do Maurício de Souza.

- Vou plecisar do jornal e da ládio de vocês – disse.

- Estamos em julho. Com R$ 1 milhão, elegemos você. A campanha fica toda por nossa conta: jornal, rádio e trio elétrico – disse o pugilista.

- E TV? – Cebolinha perguntou.

- Com TV aumenta o preço; vai para R$ 1,3 milhão – volveu o pugilista. – R$ 440 mil agora, R$ 430 mil em agosto e R$ 430 mil em setembro, se você estiver bem nas pesquisas.

- Então posso gastal R$ 870 mil sem galantia de que estalei bem em setemblo? – Cebolinha perguntou. Os cabelos dele lembravam também os de Cebolinha.

- Com o curral eleitoral que o senhor comprou no Instituto de Ação Social não há erro – disse o pugilista.

Papagaio não falou durante o tempo todo. Após 15 minutos de conversa direta e franca Cebolinha apertou a mão dos dois e saiu com os seguranças, que estavam à mesa mais próxima da saída. Nem bem Cebolinha saiu e dois sujeitos entraram no restaurante e anunciaram o assalto. Nessas alturas só estavam no recinto o pugilista, o papagaio e um casal. O mais alto dos dois assaltantes foi ao caixa e o limpou; o outro, baixinho, ficou à porta, de 38 na mão. O pugilista e o papagaio ficaram olhando para a mesa. Papagaio porejava e o pugilista podia sentir o fedor que ele exalava; lembrava o odor de flores mortas. O assaltante da porta estava visivelmente nervoso, olhando para a saída e para seu comparsa. O casal, que estivera conversando animadamente, virou uma estátua. Os olhos da moça estavam esbugalhados. O telefone celular do companheiro dela tocou, e ficou tocando até silenciar. O sujeito alto saiu de detrás do balcão com um saco cheio de dinheiro e se dirigiu para a porta. Chegou à porta e retornou, até à mesa onde estavam o pugilista e o capiau. Atirou sem mirar. O projétil da pistola 45 pegou Zeca Tatu no meio da testa. Os assaltante sumiram. A cabeça de Zeca Tatu tombou para trás e seus braços caíram ao lado da cadeira. Parecia que ele estava fazendo a sesta. 

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Brasília, 25 de março de 2012

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