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11/16/2010

RAY CUNHA



Unicórnio Azul

Levantei-me, como sempre, às cinco horas. Gosto de ouvir a madrugada se desfazendo no amanhecer. Leio. Escrevo, às vezes, pequenos poemas, como o ourives lapida a jóia. Tharcilla respirava cadenciadamente, mergulhada no vale dos sonhos. Percorria o corpo da minha mulher com o olhar, quando, no trajeto dessa viagem interminável a lembrança retornou subitamente, avassaladora como o perfume das virgens ruivas. A recordação me invadiu com a intensidade do céu de Belém do Pará, escoando no rio da tarde, em julho. Acaso um avião cortasse o céu, de tão azul, escorreria sangue. “Certamente vou encontrá-la de novo” – pensei, sem crer, contudo, no meu pensamento, pois sentia, embora imperceptível, aquele vazio que nos assalta irracionalmente e que só desaparece quando voltamos a nos alinhar à ordem do Universo. “Terá sido um sonho?” – perguntei-me, e fui à biblioteca, abri a gaveta da minha escrivaninha, a última, e lá estava, bem no fundo, onde o escondera de mim mesmo, o cartão, no qual se lia “Unicórnio Azul”.
Ontem, sentia-me perfeitamente impune no meio daquelas lindas e delicadas criaturas. Entrara ali com minha mulher e enquanto a aguardava fiquei a ouvir, deliciado, o palrar de tão encantadoras companhias. O fato de ter sido criado por minha mãe e por minha irmã mais velha, a quem chamava também de mãe, isso, além do convívio com dezenas de mulheres da família, sendo eu o único varão, determinou em mim a necessidade, vital, do elemento feminino. Onde quer que estivesse, procurava, avidamente, a presença feminina, para respirá-la, oxigenar-me, ligar-me ao éter, à vida. Só então me sentia tranquilo. Lembro-me que nos fins de semana recebíamos sempre muitas tias e primas. E lembro-me, particularmente, das gêmeas Zina e Zínia, uma loura e a outra ruiva, que me iniciaram nos prazeres, não propriamente da carne, mas do contato de peles acetinadas, perfume de cabelos sedosos, toques de mãos delicadas, sabor de lábios e a hipnose do olhar, em meio àquelas sensações que me são tão caras.
Encontrava-me numa espécie de ambiente híbrido, uma grande e antiga loja, no Conjunto Nacional, mistura de salão de beleza, butique e sala de estar, onde uma quantidade imensa de amigas de Tharcilla - principalmente as que frequentavam sua galeria de arte naquele mesmo shopping - passava as manhãs de sábado em alegre bate-papo; uma espécie de clube da Luluzinha. Ali estava eu, aguardando Tharcilla no meio daquela multidão feminina, acomodado no canto de confortável sofá de couro marrom, fingindo ler Veja.
Fiz que não vi quando no sofá à frente uma potranca subiu a saia para mostrar sua nova coxa, absolutamente livre de celulite. Engoli em seco. Bem ao meu lado, uma loura de pele deslumbrante pressionava o traseiro em mim ao mover-se para falar com sua interlocutora. Lembrei-me de um dia, em Belém. Pegara um ônibus em São Brás com destino à Estação das Docas. Nem bem me acomodei no banco e uma ninfeta pediu licença e se sentou ao meu lado, e logo começou a pressionar sua coxa na minha, fitando-me e sorrindo. Entabulou conversa. Nem me lembro mais sobre o quê. Quando dei pela coisa ela estava com a mão na minha coxa. Antes de chegarmos à Praça da República, deu-me um inesquecível beijo na boca e desceu na Avenida Nazaré, deixando atrás de si um rastro de flores. Não fora essa a única vez que coisas desse tipo aconteciam sobre ninfetas. Exerço irresistível atração sobre elas. Meço um metro e oitenta em bem pesados oitenta quilos. Tenho rosto oval, queixo quadrado com uma covinha no meio, lábios de Marlon Brando, nariz clássico e cabelos leoninos, contudo o que mais as atrai são meus olhos; eles transmitem um toque filial, que desperta nas mulheres o instinto maternal e, nas ninfetas, a urgência da descoberta. Meu único defeito físico é a mão esquerda. Estive na guerra, cobrindo, para Veja, a invasão do Kwait, e fui atingido por fragmentos de obus na mão. Logo depois me vi prisioneiro das tropas de Saddam Hussein. Iam me julgar como espião e seria enforcado, segundo me informaram. Mas fora tudo um jogo de cena, porém com tempo suficiente para que a mão infeccionasse, com risco daquilo gangrenar e eu perder a mão. Quando me libertaram, o local em que se alojara um fragmento de ferro estava bastante feio. Fui examinado em um acampamento da Cruz Vermelha e um médico, um tipo afável, disse-me que havia minúsculos fragmentos de ferro no osso e que aquilo ainda me daria alguma dor de cabeça. Pois bem, o fato é que minha mão é marcada por grande cicatriz. Tharcilla diz que aquela é sua mão predileta, porque “é a mão do herói ferido”.
Encontrava-me imerso nesses pensamentos, fingindo ler Veja, quando percebi a presença de uma senhora e de uma menina, que devia ter uns catorze anos, mas bastante desenvolvida para a idade. Possuo faro para ninfetas. Não tenho escrúpulos de confessar: já passaram pela minha cama algumas dezenas delas. Não tenho escrúpulos porque sei que as fiz felizes. Todas elas me procuraram, me caçaram, se impuseram, me deixaram sem ânimo de escapar. E as fiz felizes porque a todas iniciei com muito desvelo e carinho. Toquei-as nas cordas mais sensíveis, e só mergulhei em seus sonhos dourados quando suas entranhas passaram por uma metamorfose instantânea e elas se fizeram mulheres inteiras, com os sonhos loucos das mulheres apaixonadas. E cada uma delas, cada mulher que me encanta, e cada vez que mergulho no mundo encantado dessas criaturas, sou dominado com a intensidade da primeira vez. E isso vale para Tharcilla.
Por isso é que minha experiência com ninfetas me autoriza a lhes saber a idade assim que as vejo; sei também o peso e a altura. Aquela que acabara de ver tinha por certo catorze anos. Estava no auge da maturidade das ninfetas de Wladimir Nabocov - entre nove e catorze anos. Devia pesar quarenta e oito quilos, no seu metro e sessenta e cinco de altura. Tinha olhos verdes, aquele verde escuro, úmido, saturado de clorofila. Assemelhava-se a um arbusto jovem, confiante, desafiante, rindo, de dentro de sua incauta juventude. Os cabelos eram um ninho de parasitas, com vida própria, enraizados sobre o crânio oval, encaracolando-se, avermelhados, sobre seus estreitos ombros e tapando, às vezes, com sua claridade ruiva, os olhos de clorofila. Como potra, ou unicórnio?, expulsava a crina meneando a cabeça. Acompanhei o caos dos cabelos até onde alcançavam as costas, desci por elas e estaquei o olhar cirúrgico na cintura, inacreditavelmente estreita, abaulando-se à medida que meus olhos, agora sem controle, acariciavam-lhe as nádegas, rijas, redondas, misteriosas. O delírio veio com um raio de sol que escapou de repente de uma clarabóia impossível, incidindo sobre os películos dourados na textura de pétala da sua pele. Acordei desse sonho momentâneo com o sorriso da ninfeta bem na minha frente, me encarando. Ficou séria, sempre me encarando. Seus lábios eram polpudos, entreabertos, deixando ver um filete de marfim. O transe hipnótico durou, talvez, um segundo eterno. Então, ela começou a examinar um biquíni e me olhava de soslaio, depois entrou na cabine com o biquíni na mão.
Sentada agora no braço da poltrona, perguntou se na revista havia suplemento infantil, como nos jornais, pois gostava dos contos e dos jogos.

E teu nome? Por Deus, não te roças em mim. Sim, estou aguardando minha mulher. E tu?

Ela sorria com o rosto bem próximo do meu, tão perto que sentia seu hálito de eucalipto. Não sei por quanto tempo namoramos daquele jeito, loucos, indiferentes a tudo o que nos cercava. Será que ninguém percebeu o que estava acontecendo? Acho que tudo se passou apenas na minha mente. O que é que pões na minha mão? Por que escolhes logo a mão esquerda, a mão do herói ferido? É a mão de Tharcilla. Está bem, verei o que diz o cartão quando sair daqui. Guardei-o no bolso do paletó.
Dei por mim no corredor. Minha mulher trançara seu braço ao meu, com aquele brilho de mulher feliz nos olhos, de mulher amada e que não teme desilusões. Amava-a com intensidade - em casa, nos hotéis, na casa de praia em Salinas, nos motéis das estradas, na galeria, e até uma vez num quarto perdido na mansão de um amigo meu numa festa de casamento. Meu coração estava marcado por Tharcilla.
Deixei-a na galeria e fui ao Snob para o primeiro trago daquele sábado primaveril. Sentia o sofrimento que as mulheres muito belas me causam, pois desejo engoli-las e ficar grávido delas, e assim sentir a intensidade da ligação umbilical. Pus a mão no bolso do paletó, tirei o cartão e o examinei discretamente. Era um cartão de visita da loja, no verso do qual se lia: “Unicórnio Azul”. Mantive-o na mão do herói ferido, enquanto degustava o primeiro Campare do dia.

Brasília, 18 de abril de 1991

SERVIÇO

Este conto foi publicado no livro O Casulo Exposto, à venda nos sites das Livrarias Saraiva, Cultura e Leitura. Em Brasília, pode ser encontrado nas lojas da Livraria Leitura do Conjunto Nacional e do Pátio Brasil. Leia mais sobre O Casulo Exposto, com link no Marcador Conto.

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Pedidos para o editor
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Editor: Antonio Carlos Navarro
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