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1/10/2007

Enfoque Amazônico


POESIA

Belém, meu amor

Brasília – Belém faz 391 anos amanhã, sexta-feira/12 12. Em 1616, o capitão-mor Francisco Caldeira Castelo Branco, encarregado pela coroa portuguesa de conquistar, ocupar, explorar e defender a boca da Amazônia, de ingleses, holandeses e franceses, construiu o Forte do Presépio na península dos Tupinambá, banhada pelo rio Guamá, que deságua na baía do Guajará. Da fortaleza, a cidade se espraiou e se consolidou como a mais importante da Amazônia, e a mais charmosa.
Quando chegamos a Belém, ao amanhecer, pela baía do Guajará, a cidade se despe, aos poucos, da névoa, até emergir, nua. Se chegamos de avião e é noite, as luzes na península, como miríade na noite que desaba sobre a baía, anunciam-se como ovnis, até pousarmos no bolsão de sol de Val-de-Cães. À tarde, se é julho, o céu, de tão azul, sangra.
Belém é uma sucessão de fotografias sépias: desjejum no Ver-O-Peso - café recém-coado com tapioquinha amanteigada; peixes nos balcões de mármore do mercado - os pirarucus são, talvez, os mais bonitos, os filhotes são enormes e os meros, imensos, há sempre muita piramutaba, pescada, tucunaré, curimatã, tamuatá, gurijuba, mapará, camarão e toda sorte de frutos do mar, capturados nas costas do Pará, especialmente ao largo do Marajó, e nas costas do Amapá; almoço no Ver-O-Peso, dourada com pirão de açaí, ou filhote no Restaurante Remada, ou dourada com vinagrete e farofa na Vila Sorriso, ou pirarucu ao molho de castanha-do-pará no Mangal das Garças; à tarde, vagabundeamos, tomamos tacacá e sorvete de tapioca na Cairu, e, à noite, bebemos caldo de filhote no Remada e bebemos Cerpinha no hotel, no banheiro e enquanto nos arrumamos para o encontro com a madrugada. Os dias se sucedem com cheiro de maresia, mulheres caminhando nas praças, merengue, bebedeiras, o rio.
Mas de todos os sonhos em Belém do Pará o que mais me transmite a sensação de ofertar rosas para a madrugada é a lembrança, guardada numa prece, da mulher mais bonita do mundo. Rubem Braga disse que as mulheres mais bonitas do mundo não têm pátria; são imagens oníricas, vistas, uma única vez, em grandes aeroportos internacionais, de madrugada. Rubem Braga era poeta, mas não conheceu Belém.As mulheres mais bonitas do mundo exalam o perfume das virgens ruivas e, assim, espargem, por onde passam, um rastro de devaneio e dor, pois a suprema beleza feminina, de tão azul, sangra. As mulheres muito belas são inesgotáveis, de tão intensas. Se, ungido pelos deuses, é-nos dado penetrar o santuário da mulher mais bonita do mundo, ela estará para sempre no relicário do nosso coração, e estaremos grávidos, dela, para sempre.
As mulheres muito bonitas estão em toda parte do mundo com mais de quatro dimensões. Os poetas, entre os artistas, são os que mais vêem mulheres muito bonitas. Talvez, por isso, morrem tão jovens, ou enlouquecem. Ou se transformam em tristes homens sozinhos. Os poetas, que têm olho clínico e distinguem as mulheres muito bonitas onde quer que estejam, são ungidos por Deus por essa clarividência, mas não resistem e são exauridos pela luz intensa demais dessas obras de arte supremas.
As mulheres muito bonitas são como um cataclismo de rosas colombianas, como o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, como o perfume das virgens ruivas, como jasmineiros chorando em noite tórrida, como o céu de julho, na Amazônia, que, de tão azul, sangra. Em Belém, elas estão nas ruas, povoam as tardes, espalham seu riso nas nossas vidas, estão em toda parte. Portuguesas, negras, índias, mulatas, cafuzas, mamelucas, elas povoam as ruas e a imaginação dos artistas que elegeram a cidade seu templo.
Todos nós elegemos uma cidade para morrer. Quero morrer em Belém do Pará, onde ouço o riso das mulheres mais bonitas do mundo, observo-as trotando nos calçadões, sentadas, tomando tacacá ao cair da noite, naquele momento em que a noite cai lentamente, acamando-se, até as luzes da noite tremeluzirem como composição de Debussy.
As mulheres mais bonitas do mundo têm sabor de leite da mulher amada, seus lábios são pétalas esmigalhadas de rosas vermelhas, exalam uma mistura de Chanel Número Cinco, Mateus Rosé, Dom Perignon, rosas da madrugada e maresia. E nada as pode macular. Não devemos, nunca, nos apaixonar pelas mulheres mais bonitas do mundo, pois são livres como o vento. Mas sabemos que isso é impossível. Quando nos amam, são intensas como um jardim prenhe de rosas multicoloridas, mas livres como o próprio amor; o amor não prende, liberta dolorosamente. A liberdade é o que elas têm de mais sublime. São livres como o verso, como a pincelada do artista, como a música de Mozart.
Gostaria de subjugar a mulher mais bonita do mundo, de domá-la, de arrancar-lhe declarações apaixonadas, e gemidos, de madrugada, de encerrá-la no limite do meu olhar. Mas, as mulheres muito bonitas, ninguém pode ser dono delas. Resta-nos vagar pela cidade, na dimensão do tempo, aspirando o perfume das virgens ruivas, que as mulheres mais bonitas do mundo, atemporais, espargem nas páginas do álbum de fotografias.
Acomodado numa cadeira de palinha, na Estação das Docas, observo o rio e a tarde. Um iate parte. Talvez vá para Macapá, ou para Trinidad e Tobago. Talvez vá para Caiena. Ou para Mosqueiro. Ou Salinas. De qualquer forma, haverá de ir para um lugar lindo. A tarde é povoada de mulheres deslumbrantes, trajadas em vestidos de seda. Vindo de algum lugar, remoto, penso ouvir merengue. Concentro-me numa prece. E então sinto que ela está sentada à minha frente. O mundo gira. A mesma vertigem de uma missa na catedral quando ainda somos criança. Ela me chama de querido. Tenho certeza, então, de que estou em Belém.

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Ray Cunha

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