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12/20/2006

Belém é como cavalo morto na chuva


No Pará, tudo muda para nada mudar
Ray Cunha (*)

Brasília - Amanhece na península belenense, banhada pelo rio Guamá. No Ver-O-Peso, a maior feira da Amazônia Continental, o formigueiro humano vai se assanhando, à medida que o sol incendeia Belém do Pará. Uma mendiga, obesa, dorme ainda num banco de praça, inteiramente nua. O trânsito, nem bem a manhã começa, já é incontrolável. Quase todo mundo buzina, xinga, com palavrões impublicáveis, as mães dos outros motoristas, enquanto automóveis importados seguem fora da faixa. Os pedestres precisam ter muito cuidado, pois, ao desviar-se de um carro, pode-se ser atropelado por ciclistas, que são muitos, silenciosos e andam na contramão.
Se é dezembro, mangas caem nos calçadões esburacados, no teto dos automóveis e na cabeça dos pedestres. Mangueiras também caem. Algumas são podadas só de um lado. Carregadas de mangas nos galhos do outro lado e açoitadas pela chuva diária no tronco, não resistem às tempestades que vergastam a cidade e tombam, como gigantes caídos.
Ao meio-dia, a urbe imerge num caldeirão fervente. As sarjetas exalam o odor mefítico de esgotos estrangulados, expelindo fezes, que escorrem ao lado das bancas de tacacá, maniçoba e picadinho. Alguns trechos do calçadão da Avenida Presidente Vargas fervem, literalmente.
Então, chove. Chuva do Trópico Úmido. Grossa, interminável, chicoteada por correntes de vento. A cidade se afoga. Lembra um cavalo morto na chuva. Na manhã seguinte, o cavalo apodrece ao sol de 40 graus e à chuva da tarde, que, como o sol, cumpre seu ciclo diário na linha imaginária do Equador. O cavalo morto incha. Sua barriga ameaça explodir, exibindo as vísceras.
Na madrugada de sábado 9 de dezembro de 2006, por volta das 4h30, na Avenida Independência, bairro da Cabanagem, um automóvel com três homens e duas mulheres chocou-se contra uma passarela. As mulheres morreram. Uma delas estava grávida e agonizou durante algum tempo.
Segundo registrou o Repórter 70, do jornal O Liberal, a mais influente coluna de opinião de Belém, o carro foi depenado em quinze minutos.
Há ruas, em Belém, onde, se um carro der prego, à noite, os passageiros serão mortos e pilhados. A vida, na periferia, logra sobreviver apenas por instinto. Não há escopo moral, não há dignidade, não há redenção, mas somente fome, estupro, assassinato - a escuridão da miséria e da ignorância. No Marajó, a região mais bela do planeta, ao norte de Belém, crianças entregam-se a caminhoneiros, que as possuem como estupradores em hordas, a troco de óleo diesel, que as crianças estupradas diariamente vendem e entregam o dinheiro a seus pais, para comprar comida.
Em primeiro de janeiro de 2007, sairá o tucanato de 12 anos e entrará o famigerado Partido dos Trabalhadores do Movimento Democrático Brasileiro no comando do estado. Os emplumados tucanos passaram mais de uma década no poder, durante a qual o abismo social ficou mais fundo e movediço. Suas famílias, parentes, aderentes e apaninguados da elite dominante ficaram mais ricos e se refrescam nas suas casamatas nos edifícios mais altos da cidade, enquanto a cabocada chafurda no ambiente mefítico das ruas alagadas de fezes e urina, os curumins são devorados por vermes, giárdia e protozoários, e os bandidos, mesmo que as vítimas não esbocem resistência, matam por matar. Só Simão Jatene, o último dos tucanos, tinha quase mil assessores especiais. Nada parecido com os 40 mil com os quais o presidente Lula, do PT, aparelhou o estado. Embora o Pará seja apenas uma província do império do Brasil.
No século XIX, caboclos, identificados como cabanos, se insurgiram contra a elite lusitana no Pará. Mataram alguns aristocratas e foram massacrados. A elite portuguesa, colonizadora e brutal, deu as cartas no Pará até a abertura da Belém-Brasília, que minou a hegemonia comercial lusa nas docas da cidade, mas seus descendentes estão incrustados na burocracia e recebem altos salários, ou são profissionais liberais bem estabelecidos, recebendo ordens dos caudilhos da vez, estes, vítimas do vício sem remédio de se locupletar com o erário.
E, assim, a Cidade das Mangueiras, a mais inchada das cidades da Amazônia, exala, na canícula, o odor adocicado e pútrido de cavalo morto na chuva, estourando de inchado, devorado por bactérias, vermes e urubus. Enquanto isso, a Vale do Rio Doce continua exportando commodities extraídos do solo paraense, em vez de se exportar produtos industrializados, porque o império brasileiro, Brasília, leva os royaltys da exportação. Legitima-se a “safra” de madeira, tora-se ou queima-se a Grande Floresta, porque é bom para a soja, o pasto e as guseiras. O Ministério Público Federal engaveta a Hidrovia do Marajó porque a ilha é um sítio arqueológico (a Europa toda é um sítio arqueológico, mas cortada por hidrovias). O imperador Lula não destinou recursos para a construção das eclusas de Tucuruí, nem para a pavimentação da Transamazônica e da Santarém-Cuiabá, porque o governador do Pará é tucano. Bem, a partir de primeiro de janeiro, será petista-peemedebista.
Os portugueses criaram a cultura do privilégio (sou amigo do rei); os africanos, da magia (o pai-de-santo resolve); e os índios são preguiçosos – afinal, peixe salgado, pirão de açaí, chibé, calor e Skol pesam. Mas, a partir de primeiro de janeiro, tudo mudará, para nada mudar.

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(*) Jornalista e escritor

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